quarta-feira, dezembro 20, 2006

Abaixo o Talibã

A obra O livreiro de Cabul, da jornalista Asne Seierstad, apresenta a cultura afegã e muçulmana sob um ponto de vista pra lá de parcial
por Aerton Guimarães


Após os trágicos acontecimentos de 11 de setembro em Nova Iorque, a vida dos afegãos nunca mais foi a mesma. Osama Bin Laden impôs, de certa forma, diversas transformações ao país em que residia, principalmente devido à invasão estadunidense que ocasionou na região. Com o objetivo de retratar a situação das pessoas do Afeganistão, em 2002 a jornalista norueguesa Asne Seierstad conviveu, durante três meses, com uma família afegã. O conturbado período serviu como fonte inspiradora para a jornalista, que aborda os costumes locais de forma humanizada em uma obra que mistura ficção e realidade.

O Livreiro de Cabul (tradução de Grete Skevik; Editora Record; 316 páginas; 2006) fala de um chefe de família, o dono de livrarias Sultan Khan, personagem que dá o título da trama. Grande parte do livro gira em torno dele, embora, em diversos momentos, parece não haver uma lógica narrativa na obra de Seierstad.

A cultura afegã e os problemas do cotidiano vividos pelos membros da família Khan são o foco principal. Festas, religião, comportamento e até os pensamentos dos personagens são colocados, na tentativa de fornecer veracidade aos fatos ilustrados. Em certos momentos, a narrativa não se assemelha à história de um livro, mas sim de uma matéria jornalística, desprendendo citações aos personagens, entre outras características, com um linguajar típico de jornais, que acusa a profissão da autora.

Alguns capítulos se dedicam a mostrar as situações humilhantes vividas pelas mulheres de Cabul. Submissas aos homens, elas devem agradá-los como podem já que estes são os verdadeiros chefes de família. As privações pelas quais elas passam e ocasiões consternadoras são mostradas, como no trecho em que Sultan Khan fornece carne apenas aos filhos homens, deixando a mãe e irmãs sem o alimento: “Muitas vezes só há carne para Sultan e os filhos, e talvez um pedaço para Bibi Gul, enquanto os outros comem arroz e feijão. - Vocês não trabalharam para merecer. Vocês vivem do meu dinheiro -, ele diz” (pág. 200).

E não apenas o lado da mulher é destacado. Inúmeros aspectos negativos de toda a cultura mulçumana, afegã e características do regime Talibã são mostrados sob o olhar ocidental da autora que parece condenar todas as situações. A obra transforma-se, em certos momentos, em uma campanha anti-Talibã, visão essa muito criticada por alguns autores. O capítulo O paraíso negado, por exemplo, mostra 16 decretos feitos pelo Talibã ao assumir o poder em 1996, que restringem a liberdade da população.

O excesso de personagens, cerca de 15, e também de informações sobre os costumes locais não permite o desenvolvimento de um ritmo da história. A trama possui suas páginas dedicadas a cada um dos membros da família Khan e a algumas pessoas próximas, expondo uma breve biografia deles. Método de exposição que se repete de forma parecida, explorando o passado e o presente do personagem, o que deixa a história enfadonha.

Mesmo tendo um protagonista, a história não faz com que o leitor crie expectativas em relação ao que vai acontecer a ele, por isso não é estimulante como várias outras obras que nos fazem querer terminar nossa leitura em apenas um dia. A questão política e a segurança do país no período pós 11 de setembro são abordados em ocasiões que a autora aproveita para criticar as ações do governo afegão.

Romance, privações políticas, econômicas e religiosas, cultura e curiosidades são o pano de fundo desta obra que me lembrou, em diversos momentos, da novela veiculada em 2001 pela Rede Globo, O clone. Não apenas alguns nomes de personagens são iguais, como também expressões utilizadas na língua original. Será que Asne Seierstad assistiu ao sucesso da Globo, exibido em diferentes países do mundo?

A história termina de forma desconexa e, apenas em algumas páginas do epílogo, a autora retoma a vida dos personagens, alguns esquecidos desde a metade da obra, apresentando um “resumão” contendo explicações sobre o que aconteceu com cada um deles, como estamos acostumados a assistir nos filmes de Hollywood ou mesmo nas novelas brasileiras. Uma escolha de final um tanto incomum para uma obra literária.

Sem uma história firme, consistente e conexa, acredito que a autora não conseguiu escrever um texto atrativo. Ele é, para os leigos, uma fonte de informações parciais sobre a cultura local baseada em uma família afegã, que não devem servir como base para compreender toda a cultura daquele país, questão bem colocada pela a autora no início de sua obra.

Comentário
O Livreiro de Cabul foi lançado no Brasil em meados de 2006 pela editora Record numa tentativa de ir ao rastro do grande sucesso lançado no ano passado em terras brasileiras, O caçador de pipas, do autor afegão Khaled Hosseini. Porém, diferentemente do que ocorreu no Brasil, a obra da jornalista Asne Seierstad foi originalmente publicada um ano antes de O caçador de pipas, em 2002. Além de O Livreiro, Seierstad teve outra obra lançada recentemente no Brasil: 101 dias em Bagdá, que retrata os dramas vividos durante a invasão americana no Afeganistão após os ataques de 11 de setembro.