segunda-feira, outubro 22, 2007

Segredos

Estava transtornado. Disse a todos que iria viajar. Passeei pelas ruas, mas nada encontrei. Por impulso, fui ao mercado da esquina.

Eu precisava saber. Não sabia como, nada mais me ocorreu. Assim, a procurei. Chegando lá, uma casa simples. A grade que a rodeia demonstra mau gosto ou mesmo a falta de preocupação com meros detalhes. A porta principal não convida a adentrar. No canto direito, está corroída. Há, na verdade, um buraco de cerca de meio metro de diâmetro. É por onde o cachorro e dois gatos acabam de passar.

Uma mulher abre a porta para mim. Em uma conversa rápida, senti-me mais uma vez inseguro e quis voltar.

- Você demorou, ela disse.
- Estava tomando coragem.
- Na verdade, poucos conseguem chegar aqui.
- A maioria tem receio, creio eu.
- Haveria outro motivo?

Enquanto trocávamos curtas frases, caminhávamos pelo corredor. A casa tem um aspecto sombrio. Janelas fechadas e pouca luminosidade, apesar de ainda não passar das quatro da tarde e o dia estar bem ensolarado.

Vejo novamente os animais. Estão embolados, praticamente um em cima do outro, no canto da sala. Devem ter sido criados juntos desde novos. Não é comum tal cumplicidade entre cachorros e gatos.

Velas de tamanhos e cores variadas acesas por todos os cantos. Em cima da mesa, na estante, próximo a um antigo espelho. Ao ver meu reflexo, pergunto-me sobre o que estou fazendo neste lugar. As sombras geradas pelas velas em meu rosto o deixam desconfigurado.

O bichano com listras amarelas entrelaça-se em minhas pernas. Emite um singelo miado. Não gosto de gatos. Quando criança, fui atacado por um e tenho até hoje a cicatriz em meu braço direito.

A mulher, vestida com um simples vestido lilás, tem o rosto marcado pelo passado. Cabelos grisalhos e pálpebras caídas acusam a idade avançada. Oferece-me algo para beber. Recuso.

- Me chamo Elisa Santiago.

Não tenho coragem de dizer meu nome verdadeiro. Falo o primeiro que me vem à cabeça, o nome de um grande amigo de infância.

- Renato Radmak, prazer.

Olha-me de maneira desconfiada. Não sei como, mas percebe que não lhe disse a verdade.

- Por aqui, diz, guiando-me.

Cercada internamente por uma cortina cor de abóbora, o pequeno aposento conta com algumas almofadas espalhadas pelo chão. Nem as paredes, tampouco as janelas, estão visíveis. Uma mesa circular e dois tamboretes completam o ambiente.

- Sente-se.

Ao escutá-la, meu coração dispara.

- Não é necessário que me diga o nome verdadeiro, apenas não esconda seus pensamentos, rebateu de maneira incômoda. Ela realmente sabia.

Cada vez mais receoso, fico calado. Fico observando-a, enquanto realiza seu ritual. Por sobre a mesa, põe o baralho de cartas. Nunca tinha visto um daquela maneira. Estava acostumado com desenhos simples, avermelhados ou negros. Mas daquele formato, cheio de simbologias, era uma novidade para mim.

Elisa Santiago era uma mulher solitária. Vivia sozinha há mais de vinte anos, desde que um acidente tirou a vida de seu marido durante a lua de mel. A partir daquele momento, ela decidira que nunca mais se entregaria a ninguém. Dedicarse-ia apenas a esclarecer as pessoas com o seu dom.

- Você sofre mais do que deveria, começou ela.
- Isso acontece com todos, rebati.
- Apenas com os fracos, os mal resolvidos. Quem não se sente seguro simplesmente não alça grandes vôos.
- Por que me diz isso? - questionei. Não estava ali para ouvir conselhos de auto-ajuda.
- Falta atitude.
- Não vim aqui para ouvir esse tipo de coisa.
- Tudo bem. Não precisa pagar por isso. Se quer mesmo saber, ela realmente te ama. Parecia ler meus pensamentos.
- Mas há todos os indícios.
- Indícios não são provas.
- Não sei se teremos um futuro juntos, acabei expondo minha maior angústia.

Lembrei de todos os anos que passamos juntos. Conheci Alessandra na quinta-série, quando eu tinha apenas 11 anos. Até aquele dia em que ela entrou pela porta da sala de aula eu não havia experimentado tamanho sentimento por ninguém. Começamos a namorar três anos depois e neste mês completamos dez anos juntos.

- Não fique desconfiando de tudo. Não há com que se preocupar. Posso ver o quanto a ama. E é recíproco. Ela já deu motivos para dúvida?
- Não sei. Ela está mais distante. Comecei a perceber isso há cerca de três meses. Não me reconheço como seu companheiro, e sim apenas como um coadjuvante.
- Quer mesmo permitir que pequenas dificuldades financeiras acabem com sua história?

Ela adivinhara mais uma vez. Como ela poderia saber que a maioria das nossas brigas tem esse problema como pano de fundo?

- Não se deixe abater. Digo mais uma vez, tenha auto-segurança, consiga um novo emprego e resolva os problemas. O amor não pode terminar assim.
- Temos mesmo um futuro como o casal que éramos no início?
- Não há dúvidas.

Uma lágrima percorreu minha face esquerda. Não me recordava da última vez que isso ocorrera. Agradeci à cartomante. A visita foi como um novo fôlego ao que eu sentia. Deixei de lado os sentimentos que me perturbavam e decidi voltar pra casa.

Senti-me renovado. As palavras daquela mulher me deram um ânimo maior do que poderia imaginar. Cheguei em casa e lá estavam eles. Alessandra e o marido. Ele havia descoberto tudo sobre nós. Amantes por tanto tempo e Renato, meu amigo de infância, nunca havia desconfiado.

Descobriu por acidente naquele mesmo dia, a partir da ligação que eu havia feito para Alessandra. Ela não ouvira o telefone tocar e nem a mensagem que deixei, mas ele sim. O ódio o tomara por completo. Cortou-me a garganta e decepou a cabeça de Alessandra. Em poucos minutos dormi para nunca mais acordar.

Baseado no texto A cartomante, de Machado de Assis.

3 Comments:

At 22 outubro, 2007, Blogger Unknown said...

Adentrar é uma palavra muito feia. Gostei do enredo, é interessante e dá vontade de ler até o final. Mas o desenlace é um poucom sem graça. Sem dúvida, não é um final previsível, mas acho que faltou um pouco de tempero para enfatizar a ironia. Além do mais, era de se esperar que inspirado em Machado vc fizesse um defunto falar. A propósito, eu ainda não li esse conto do Machado. Acho que você escreveu bem.

 
At 22 outubro, 2007, Blogger bel. said...

adicionei o seu blog no meu blog, tá?
=)

 
At 31 outubro, 2007, Blogger Unknown said...

A Jaqueline tirou as palavras da minha boca. (Desculpe a falta de originalidade).

 

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