A obra O livreiro de Cabul, da jornalista Asne Seierstad, apresenta a cultura afegã e muçulmana sob um ponto de vista pra lá de parcialpor Aerton GuimarãesApós os trágicos acontecimentos de 11 de setembro em Nova Iorque, a vida dos afegãos nunca mais foi a mesma. Osama Bin Laden impôs, de certa forma, diversas transformações ao país em que residia, principalmente devido à invasão estadunidense que ocasionou na região. Com o objetivo de retratar a situação das pessoas do Afeganistão, em 2002 a jornalista norueguesa Asne Seierstad conviveu, durante três meses, com uma família afegã. O conturbado período serviu como fonte inspiradora para a jornalista, que aborda os costumes locais de forma humanizada em uma obra que mistura ficção e realidade.
O Livreiro de Cabul (tradução de Grete Skevik; Editora Record; 316 páginas; 2006) fala de um chefe de família, o dono de livrarias Sultan Khan, personagem que dá o título da trama. Grande parte do livro gira em torno dele, embora, em diversos momentos, parece não haver uma lógica narrativa na obra de Seierstad.
A cultura afegã e os problemas do cotidiano vividos pelos membros da família Khan são o foco principal. Festas, religião, comportamento e até os pensamentos dos personagens são colocados, na tentativa de fornecer veracidade aos fatos ilustrados. Em certos momentos, a narrativa não se assemelha à história de um livro, mas sim de uma matéria jornalística, desprendendo citações aos personagens, entre outras características, com um linguajar típico de jornais, que acusa a profissão da autora.
Alguns capítulos se dedicam a mostrar as situações humilhantes vividas pelas mulheres de Cabul. Submissas aos homens, elas devem agradá-los como podem já que estes são os verdadeiros chefes de família. As privações pelas quais elas passam e ocasiões consternadoras são mostradas, como no trecho em que Sultan Khan fornece carne apenas aos filhos homens, deixando a mãe e irmãs sem o alimento: “Muitas vezes só há carne para Sultan e os filhos, e talvez um pedaço para Bibi Gul, enquanto os outros comem arroz e feijão. - Vocês não trabalharam para merecer. Vocês vivem do meu dinheiro -, ele diz” (pág. 200).
E não apenas o lado da mulher é destacado. Inúmeros aspectos negativos de toda a cultura mulçumana, afegã e características do regime Talibã são mostrados sob o olhar ocidental da autora que parece condenar todas as situações. A obra transforma-se, em certos momentos, em uma campanha anti-Talibã, visão essa muito criticada por alguns autores. O capítulo O paraíso negado, por exemplo, mostra 16 decretos feitos pelo Talibã ao assumir o poder em 1996, que restringem a liberdade da população.
O excesso de personagens, cerca de 15, e também de informações sobre os costumes locais não permite o desenvolvimento de um ritmo da história. A trama possui suas páginas dedicadas a cada um dos membros da família Khan e a algumas pessoas próximas, expondo uma breve biografia deles. Método de exposição que se repete de forma parecida, explorando o passado e o presente do personagem, o que deixa a história enfadonha.
Mesmo tendo um protagonista, a história não faz com que o leitor crie expectativas em relação ao que vai acontecer a ele, por isso não é estimulante como várias outras obras que nos fazem querer terminar nossa leitura em apenas um dia. A questão política e a segurança do país no período pós 11 de setembro são abordados em ocasiões que a autora aproveita para criticar as ações do governo afegão.
Romance, privações políticas, econômicas e religiosas, cultura e curiosidades são o pano de fundo desta obra que me lembrou, em diversos momentos, da novela veiculada em 2001 pela Rede Globo, O clone. Não apenas alguns nomes de personagens são iguais, como também expressões utilizadas na língua original. Será que Asne Seierstad assistiu ao sucesso da Globo, exibido em diferentes países do mundo?
A história termina de forma desconexa e, apenas em algumas páginas do epílogo, a autora retoma a vida dos personagens, alguns esquecidos desde a metade da obra, apresentando um “resumão” contendo explicações sobre o que aconteceu com cada um deles, como estamos acostumados a assistir nos filmes de Hollywood ou mesmo nas novelas brasileiras. Uma escolha de final um tanto incomum para uma obra literária.
Sem uma história firme, consistente e conexa, acredito que a autora não conseguiu escrever um texto atrativo. Ele é, para os leigos, uma fonte de informações parciais sobre a cultura local baseada em uma família afegã, que não devem servir como base para compreender toda a cultura daquele país, questão bem colocada pela a autora no início de sua obra.
ComentárioO Livreiro de Cabul foi lançado no Brasil em meados de 2006 pela editora Record numa tentativa de ir ao rastro do grande sucesso lançado no ano passado em terras brasileiras, O caçador de pipas, do autor afegão Khaled Hosseini. Porém, diferentemente do que ocorreu no Brasil, a obra da jornalista Asne Seierstad foi originalmente publicada um ano antes de O caçador de pipas, em 2002. Além de O Livreiro, Seierstad teve outra obra lançada recentemente no Brasil: 101 dias em Bagdá, que retrata os dramas vividos durante a invasão americana no Afeganistão após os ataques de 11 de setembro.